Sunday, May 02, 2010

O lugar do segredo





O Lugar do Segredo - Bárbara Lia
(Teatro - ed. 21 gramas)

MULHER NA ÁRVORE



Mulher na Árvore*

Minha mãe nunca se masturbou.
Chovia.
A porta aberta.
Segui em direção a quem me é mais íntimo: São Judas Tadeu. A agulha da bússola do meu coração sabe onde é o norte por aqui. Canto direito primeira fila de bancos.
Escrevo no bloco azul, encharcada de chuva. Nem me benzi. Sentei ali como sento nos cafés: Aqui só tem pão e vinho tinto. A ratazana de sacristia me espia. Convocaria a Inquisição caso lesse os rabiscos – cena de masturbação.
Estou pura.
A cena é pura. Nenhuma imagem levanta o dedo em riste para mim, São Judas nem ao menos espia com o canto do olho. Dane-se a cantora de altar. Olhos de juiz pra cima de mim. Dane-se! Nunca mudam os hinos? Nunca mudam. Ainda é o mesmo. Sei-o letra a letra há décadas. Vai ser o mesmo quando eu sentar em outro banco outro lugar outra chuva daqui uma década. Começa a missa e a minha cena se adensa. O Padre diz uma poesia de São João e mexe no mais fundo daquela lagoa de lágrimas, uma salta assim ao final da poesia.



Deus é Amor
Quem permanece no Amor
Permanece em Deus
E Deus nele



Simples assim. Gota a gota absolvo-me.
A cantora ratazana arregala os olhos. Não sou feita de grifes pneus peças de computador porra e crack. Encaro-a. Quer um beijo de batom roxo para deixar seus lábios pura sexta-feira santa? O maior susto do dia dela, a mulher estranha molhada de chuva chora. Chorar – deplorar prantear arrepender-se derramar lágrimas lastimar-se exprimir dor tristeza ETCETERA
Sou o etcetera. Risco de não definição. O espanto coletivo me coloca na árvore gravetos e gravetos o canto das harpias no canto esperando. Alguém por favor, um voluntário é só ir até ali com a tocha, rápido, um voluntário. Harpias? Harpias apenas gralham não tem mãos de acender a chama nem para aniquilar o inimigo. Harpias declamam opus de escarro e odes de amianto, mas ficam estancadas em suas árvores. Covardes. Um voluntário, por favor, antes da chuva antes da chuva.
Chove. Fim de missa. Abraços incenso tremor de pavios amarelos. A cena, a cena e o bloco azul borrado. Lágrimas santas na cena maculada.
“Sempre me interrompe
Sempre
Tem um radar
Sempre me interrompe no ápice
(respira fundo olhos cerrados a dança sob os lençóis dedos ágeis olhos cerrados respiração suspensa goza)”
O céu tem cheiro de rio podre. Tietê ao amanhecer.
Minha mãe nunca se masturbou.
É matemática pura.
Lógica.
Minha mãe nunca se masturbou.
Zero chance.
Zero caloria na tabela do pecado.
A cena está modesta.
Escrevo ao final do bloco:
Reescrever a cena da masturbação
Luz.
Nossa Senhora é magnética.
Nunca olhei para ela ali, a leste do éden. Culpa de São Judas que me abduz. Meu outro eu somos das causas impossíveis.
Aqui está o livro da vida.
Procurem pela palavra – Impossível.
Não tem.
Não vou dizer nunca que escrevi a cena da masturbação no primeiro banco à direita - Catedral em dia de chuva.
Permaneço no amor.
*Menção Honrosa no Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio – 2009 da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná.

 * Menção  Honrosa no Concurso Nacional de Contos Newton Sampaio/2009







- O conto - Mulher na Árvore -  virou cena:
 

- Cena #2 da Peça de Teatro "O lugar do Segredo" -  Personagens - duas mulheres (A e D)



SILABAS BÁRBARAS



(Inverno em uma igreja)



D – (mulher em pé diante de um piano em uma igreja, ao lado do altar)
– Minha mãe nunca se masturbou.
A – (mulher entra e senta-se no primeiro banco de uma fila de bancos encostados na parede atrás de um altar pequeno com uma imagem)
- A porta aberta.
Segui em direção a quem me é mais íntimo: São Judas Tadeu. A agulha da bússola do meu coração sabe onde é o norte por aqui. Canto direito primeira fila de bancos.
Escrevo no bloco azul, encharcada de chuva. Nem me benzi. Sentei ali como sento nos cafés, aqui só tem pão e vinho tinto. A ratazana de sacristia me espia. Convocaria a Inquisição caso lesse os rabiscos – cena de masturbação.
D - Estou pura.
A – A cena é pura. Nenhuma imagem levanta o dedo em riste para mim, São Judas nem ao menos espia com o canto do olho. Dane-se a cantora de altar. Olhos de juiz pra cima de mim. Dane-se! Nunca mudam os hinos? Nunca mudam. Ainda é o mesmo. Sei letra a letra há décadas. Vai ser o mesmo quando eu sentar em outro banco outro lugar outra neve daqui uma década. O padre fala, concentro-me na poesia de João apóstolo enquanto minha cena se adensa.
Deus é Amor / Quem permanece no Amor / Permanece em Deus / E Deus nele.
Simples assim. Gota a gota absolvo-me. Seco uma lágrima.
Permaneço no amor. A cantora ratazana arregala os olhos. Não sou feita de grifes pneus peças de computador porra e crack.
(pausa para deglutir o olhar)
Quer um beijo de batom roxo pra deixar seus lábios pura sexta-feira santa?
Sou o etcetera. Risco de não definição. O espanto coletivo me coloca na árvore gravetos e gravetos o canto das harpias no canto, esperando. (pausa)
Fosse a Idade média e eu já estaria queimada na árvore...
D - Alguém, por favor! Um voluntário. É só ir até ali com a tocha, rápido, um voluntário.
A - Harpias? Harpias apenas gralham não tem mãos de acender a chama nem para aniquilar o inimigo. Harpias declamam opus de escarro e odes de amianto, mas ficam estancadas em suas árvores. Covardes.
D - Um voluntário, por favor, antes da chuva antes da chuva.
A - A cena, a cena e o bloco azul borrado. Lágrimas santas na cena maculada.
D “Sempre me interrompe – Sempre - Tem um radar - Sempre me interrompe no ápice”
A (fala enquanto escreve no bloco)
Respira fundo olhos cerrados a dança sob os lençóis dedos ágeis respiração suspensa - goza (pausa)
Zero chance. Zero caloria na tabela do pecado. A cena está modesta. Escrevo no final do bloco:
Reescrever a cena da masturbação.
D - Minha mãe nunca se masturbou. É matemática pura. Lógica.
Minha mãe nunca se masturbou.
A - Luz.
Nossa Senhora é magnética.
Nunca olhei para ela ali, a leste do éden. Culpa de São Judas que me abduz. Meu alter-ego, somos das causas impossíveis.
Não vou dizer nunca que escrevi a cena da masturbação no primeiro banco à direita – Catedral em dia de chuva.







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O Lugar do Segredo - Peça de Teatro  - A cena extraída do conto Mulher na Árvore (Menção honrosa no Conc. Nacional de Contos Newton Sampaio) O subtítulo desta peça pode ser - Quero Ser Emily Dickinson - o enredo é uma via-sacra, via-crucis - as estações não são aquelas bíblicas - são as estações do ano mesmo. Nesta caminhada nada sacra,  a personagem central decide se isolar de tudo e viver como Emily Dickinson. A personagem central não encontra o seu lugar, crê que não existe um lugar. O lugar do segredo é este que a poesia habita. Esta clausura, por isto a cena final é um diálogo com Emily Dickinson. A peça foi escrita durante a oficina com Roberto Alvim.  Passei 2009 neste ciclo de angústia e busca e desejo, para chegar à conclusão que já tenho romances a serem escritos, ideias arquivadas há muito, a poesia e um caminho que não pode bifurcar mais e mais.
Para registro desta passagem - um livro artesanal. A quem interessar possa, esta minha peça de teatro. A imagem da capa é da artista plástica catarinense - Ana Luisa Kaminski.



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