Assai - Situada no Norte do Paraná. Minha cidade natal. Meu nome e local de nascimento em junção poética traz uma espécie de personagem: A Guerreira do Sol Nascente.
Quando era garota e procurava o significado de meu nome eu encontrava - Estrangeira. Com o tempo mudaram o significado do meu nome para Guerreira. Achava Estrangeira mais poético, pendendo para um filme de Arte. A estrangeira. Seguido por Lia, meu nome assinalou o meu martírio. Naqueles tempos Lia significava - Aquela que tem olhos tristes e cansados. Por muito tempo quando eu evocava o meu desejo arquivado de ser escritora eu comentava que minha biografia teria exatamente este título:
- Estrangeira de olhos tristes e cansados -
Lia mudou também para um outro significado pequeno - Ovelha.
Sou contraditória pela escolha deste nome, nasci e cresci assinalada por este vaticínio - Guerreira Ovelha. Ovelha Negra. Há mais de meio século deixei este lugar onde nasci. Nada recordo. Uma única imagem minha que narrei em um texto. Uma fotografia aos três anos de idade. Sim. Minha família sempre foi pobre. Não sei qual o meu rosto primeiro. Não sei nada a não ser as narrativas.
Nasci neste lugar, onde hoje existe um belo portal. Uma cidade colonizada por japoneses. A cidade mudou, estive lá há quase um ano para participar do Projeto de duas professoras do Colégio Barão: Mª Zélia e Rosana. Uma emoção ser reconhecida como poeta, estar em meu lugar e dizer meus versos, levar poesia aos meninos que lá nasceram em outro tempo.
-- pequeno texto de uma provável biografia...
Arigatô, Ramón!
Qual o pai da menina do filme O livro de cabeceira desenhastes
anagramas em minha pele... A palavra Liberdade e os sonhos do sertão que você
cultivou docemente. Arigatô, meu pai. No lugar onde nasci existia a maior
colônia de japoneses do nosso Estado. E tua vida era zen. A minha vida era um
risco. Pequeno traço escuro no papel de arroz – olho de pássaro. Um pequeno
pássaro de papel branco cortando as planícies e misturando-se ao algodão que os
sitiantes plantavam. Era assim nossa Assai. Nada lá é memória para mim, Ramón.
Nada.
Olho para esta foto que é o que restou da minha
vida em Assai. A minha primeira foto.
Esta imagem:
Tenho três anos e estou em uma estrada de chão. Estou
descalça. O vestido é novo. A foto sépia descortina uma roupa clara, simples.
Estou bonita, ainda que descalça. Os cabelos curtos morenos lisos. Uma franja
pequena. Um rostinho delicado. O vestido deixa à mostra a sequela de Pólio. Não
tenho nenhuma foto antes desta, é a primeira. A sacramentar o meu destino.
Estaria sempre só pela estrada da vida. Sépia. Minha vida Sépia. Nem colorida e
nem em preto e branco.
Ramón sempre perguntava a cada manhã quando eu me
sentava para a primeira refeição.
- Teve sonhos coloridos ou em preto e branco?
Décadas se passaram e hoje devo dizer ao meu pai,
onde quer que ele se encontre – Sempre sonhei colorido, mas, quando ia revelar
meus sonhos no Laboratório da Vida a revelação era sempre – Sépia.
Meus sonhos nunca puderam ver a luz dos dias.
Demoravam tanto que ao chegarem até mim não passavam de fotos amarelecidas,
este sépia eterno...
Ainda assim:
Arigatô, Ramón!
O ideograma – palavra – desenhado na altura do meu
coração, cada vez que recitavas os versos de Gonçalves Dias, de Camões...
E quando a noite caia e a casa ficava quieta o teu
vulto curvado sobre uma mesa calculando a distância entre uma e outra gleba.
Gleba, que palavra esta, Ramón? Quando eu ia ao colégio e aprendia o básico,
não sabia a professora que eu tinha um dicionário atado ao meu uniforme de
menina. Que nas noites eu ouvia lendas gregas e lendas indígenas. E que me
contavas sobre a tua vida de menino entre os índios. Eu me assustava só de
ouvir a palavra jaguatirica. O sertão teu era bordado na mata-junta como se um
filme estivesse impregnado e aquela madeira clara fosse o primeiro celulóide a
projetar em uma fictícia tela um reino de águas claras e cipós. A lua clara era
minha amiga, por compreender que ela foi a primeira lâmpada da vida do pai. Cada
vez que ele contava como se atirava de uma escarpa muito alta nas águas do rio
eu sentia o tremor das águas. O dom dele: Com carinho e cuidado me levar ao
caminho que ele havia percorrido e me ensinar a escrever antes mesmo das
primeiras aulas. Era um tédio de abelhas e sapos as aulas da mulher morena no
pequeno Grupo Escolar. Eu já havia escrito hinos em meu coração e já dedilhara
todo o alfabeto da natureza.
Arigatô, Ramón.
Pelas serestas e pela poesia.
O que te leva a ser, dentro de uma metáfora, como o
pai daquela garotinha do filme de Peter Greenaway, que pinta em sua pele anagramas e a partir
desta infância constrói uma escritora.
O que não sabias é que eu teria que sair mil vezes à chuva
para apagar cada história pincelada em meu corpo. Que meu corpo quase viraria
chuva, de tanta chuva.
Tinta negra e jocosa escorrendo cada vez que tive que
apagar um enredo prometido para deixar meu corpo de novo – página branca.
Pura metáfora.
De real mesmo uma impressão eterna – teus lábios em
minha testa.
Quando lembro todas as nossas despedidas dá um nó na
garganta.
O carinho fecundo do teu beijo.
O carinho de cada adeus pousando seus lábios finos em
minha testa, uma reverência eterna.
O beijo do pai era para lacrar a minha mente de ouro.
A sua menina nota dez, que não ia nunca ser miss, nem atleta, nem corredora de
maratona, nem nada... Ia ser apenas a sua enrustida poeta. Embora ele tenha
morrido antes da minha vida tomar este rumo da escrita, ele lia minha alma
sensível e dividia comigo tudo o que sabia. Como quem deposita hieróglifos em
minha alma. Anagramas em minha pele. Um tesouro que eu guardei. Cada palavra.
Cada conto. Cada lenda. Cada estrela que apontou com seus dedos morenos.
Bárbara Lia