Christian Schloe
Há três de mim. Há o cenário.
Uma igreja pequena. Os atores. Pálidos e mumificados ouvindo a voz do pregador.
Há um perfume de incenso e há um coro que só canta quando o pregador acena,
levanta a mão, maestro tosco. Há um ranger de madeira de bancos velhos, mas não
ouço o ranger de almas. Minha alma range desde que eu era menina. Hoje vivo à
direita de mim, livre. Já escapei do cenário. Eu disse – Há três. Uma que todos
vêem em pé, esgueirando-se pelas paredes onduladas do templo. Uma que está ali
sem estar, a viver como uma obrigação, para não ferir quem a ama, fica ali,
ouvindo as pregações. Ajoelha, arrepende, reza, comunga e até canta. Há aquela
que está no limbo. Uma névoa líquida fria e esponjosa que envolve em uma dança
estranha, quase bonita, quase assim aquele retrato de Isadora Duncan. Voando
entre o tecido, linda. No limbo não sou feliz, no templo não sou feliz. Só a
terceira que esgueira para fora e explode o peito de ar limpo e azul, esta que
ninguém vê. A invisível. A invisível é
feliz, esta que ninguém conhece. Que ninguém chicoteia como ao Cristo. Que
ninguém julga: Pilatos aos borbotões. Esta que ninguém prega na cruz. A que as
suas sementes conhecem e a amam. Aquela que o amado tocou, em silêncio. A
terceira é o ar o azul o pássaro a cópula o colo maternal a misantropa. A
terceira que ninguém conhece. A terceira que só os que amam conhecem. O frio
ondulado das paredes causa artrite. Toca o sino e a hóstia é erguida.
Sacrifício. Vou ter que ficar aqui.
Bárbara Lia - da série de livros artesanais.