Tão cedo apagou sua
luz.
A fonte cessou de
jorrar palavras.
O silêncio dele era
o que eu mais amava.
E nunca ficamos em
silêncio a não ser na hora do amor.
O silêncio era a
hora do corpo.
Longe da cama,
quando ele era alma, era uma interrogação incessante.
Quantas perguntas
ele tinha ao universo?
Quantas vezes eu vi
seu olhar perdido em um ponto?
No silêncio da
cidade, quando os lampiões apagavam.
Nenhuma luz além da
lua.
Nenhuma voz além do
canto das estrelas.
Ele vinha
sorrateiro pela calçada.
Pisando leve para
não acordar ninguém pelas casas.
E um assobio fino
ele emitia, para que ninguém reconhecesse sua voz.
Esgueirava-se pelas
paredes até chegar à minha porta.
Porta de viúva
solitária.
Porta que jamais se
fecharia para o doutor que chega, vindo de um exílio, com o coração ardendo e
com o corpo incendiado.
Dizia-me da vida e
da sua fome de infinito.
Sofro, Lídia, do medo do destino.
Qualquer pequena cousa de onde pode
Brotar uma ordem nova em minha vida,
Lídia,
me aterra.
Qualquer cousa, qual seja, que transforme
Meu plano curso de existência, embora
Para melhores cousas o transforme,
Por
transformar
Odeio, e não o quero. Os deuses dessem
Que ininterrupta minha vida fosse
Uma planície sem relevos, indo
Até
ao fim.
A glória embora eu nunca haurisse, ou
nunca
Amor ou justa estima dessem-me outros,
Basta que a vida seja só a vida
E
que eu a viva.
E a fome dele se
estendia nas noites cálidas.
Alguém já amou?
Com corpo alma e
cérebro?
Com tudo que temos
em todas as fronteiras do ser?
Alguém já amou
inteiro, sem reservas, sem pudores?
Ah! Quem assim amou
sabe o poder dos amantes.
Ricardo era um
menino gênio.
Carente de amor e
de atenção.
Gostava de aparecer
diante do mundo ao lado das gazelas fogosas.
Vestia sua
impecável roupa e estendia o braço para uma moça clara de cabelos de fogo e
saia como um deus.
Vi algumas vezes e
virei o rosto.
Quis apagar aquela
imagem para não macular nosso leito.
Se perguntarem qual
o mais perfeito casamento eu direi que é aquele que se consuma na cama.
Ninguém é casado
plenamente e vive um amor de plenitude, se na hora em que os corpos se tocam o
estranhamento deita ao lado.
Nada em Ricardo me
era estranho.
Nenhuma curva de
seu corpo, nenhum odor.
Nada nele me
atingia.
Tudo era perfeição.
No final, quando
brilhavam seus olhos mais que a estrela matutina, eu sabia que seu silêncio
dizia daquela mesma sensação.
Os seus mais
secretos medos ele me confessava.
De mim ele sabia
pouco.
Do meu ofício de
bordar, que era um hobby.
O meu casamento que
findou com a morte do capitão de uma fragata.
E a pensão
vitalícia que eu recebia, permitia viver nesta alegria, fazer aquilo que se
gosta.
Nenhuma benção é
maior que esta – Fazer o que se gosta.
Gostava de bordar
as toalhas finas.
Gostava de ir
separando os fios de ouro para adornar a gola de uma camisinha de pagão que ia
embalar o sono de uma criança venturosa.
Passava minha vida
entre os tecidos finos, agulhas, fios.
Mesmo assim, nunca
consegui juntar o quebra-cabeça que era aquele homem. Costurar os segredos dele
até montar um mosaico.
Aquela força
masculina que chegou a uma tarde, quando o vento insistiu em arrancar de minha
cabeça o chapéu.
Quando meu salto
alto não permitiu uma corrida rápida para resgatá-lo e vi chegar aquele homem
alto, debruçar-se com elegância até o chão e me sorrir acenando com o meu
chapéu.
Então eu me tornei
– Lidia, a confidente.
A conduzi-lo por
uma Lisboa que já não era tão igual a que ele deixara para viver no Brasil.
Ainda tinha resquícios
de sol tropical em sua face.
Ainda sorria todos
os dentes quando chegou com a alma salpicada de uma centena de almas felizes.
Dizia de um povo
feliz, de um lugar de sol e luz.
Nada que pudesse
impedir seu regresso.
Beijar Lisboa e
viver aqui.
Uma tarde, quando
eu tinha uma encomenda, ele seguiu sem mim.
Um pequeno barco a
remo e foi remar no Tejo.
Dizem que
desapareceu no Horizonte, sem explicação.
No meu coração as
poesias que ele atirava ao vento na primavera mais feliz da minha vida.
Para sempre aquela
certeza de que ele poderia retornar, com a roupa molhada e o corpo ardendo.
O mesmo corpo
ardente que me levou ao céu...
Desenlacemos
as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer
gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Conhecendo
Ricardo, conheci o fingimento dos poetas.
Sua
aura platônica era disfarce.
Por
amar os deuses ele construía mitos.
Ele –
o próprio mito.
O
homem não combinava com suas palavras.
Nada
nele era tão alienado e nem tão elevado.
Não
era nihilista.
Não
contemplava o mundo e aproveitava o dia.
Ele
ardia o dia, inquiria o mundo, ansiava viver gota a gota, e vivia.
Tudo que da alma jorrava caia pelo corpo, e o corpo
seu era todo amor e desejo de vida. Desejo que toquei e alimentei.
No entanto, a palavra é o Poder.
E assim ele ficou para eternidade.
Com esta personalidade adulterada.
Não me importo.
Conheci o potencial do homem inteiro.
E bebo suas palavras mentalmente, enquanto bordo.
Não estava preparada para aquele Outono.
O outono que o levou de mim, para sempre.
Quando, Lídia, vier o nosso Outono
Com o Inverno que há nele, reservemos
Um pensamento, não para a futura
Primavera, que é de
outrem,
Nem para o Estio, de quem somos mortos,
Senão para o que fica do que passa —
O amarelo actual que as folhas vivem
E as torna diferentes.
Bárbara Lia - do livro inédito - Contos Portugueses